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Como o Systema cortou o medo e tudo ficou mais claro

por Nuno Ramos de Almeida

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Cortei o braço numa luta na escola. Comecei aos empurrões contra três e acabei no chão a espirrar sangue. Fui para ao hospital e essa ferida teve consequências imediatas de uma dezena de pontos e algumas sequelas que duraram bastante mais. As físicas foram as menores. Deixei de jogar andebol, porque a minha mão perdeu, dado o corte parcial do nervo no braço, alguma capacidade de captar a bola a grande velocidade. As psicológicas foram mais irritantes. A dor regressa muitas vezes à memória, levando a temer a repetição desse corte que se espalhou como um choque eléctrico, apenas segundos depois de ter entrado no corpo. Fui curando esse receio, sem nunca o sarar, praticando artes marciais. Já tinha feito Judo durante três anos, passei pelo Shorinji Kempo, até aos primeiros anos da universidade, e mais tarde pratiquei Krav Maga. Tudo isso antes de ter “descoberto” o Systema.

Pratiquei irregularmente estas arte durante alguns anos, mas nunca o fiz de uma forma séria e conseguida. Progredia, mas nunca o suficiente para me sentir com confiança na minha capacidade de ultrapassar o medo da dor. Isso não me impedia de tentar forçar-me em situações complicadas.

Vivi uma época agitada do ponto de vista político e social. Envolvi-me algumas vezes em pancadarias colectivas, as artes marciais conseguiam que não tivesse muita vontade individual de andar à pancada. Mas por questões que para mim eram importantes não fugia a uma luta.

O incidente que tinha sofrido aos 15 anos, nunca deixou de ter o seu peso. Normalmente, não ficava muito calmo quando via ou imaginava a entrada de facas nesses confrontos. O país mudou e eu cresci e deixei-me desse tipo de confusões a meio da universidade.

Sou jornalista profissional. Comecei a trabalhar na SIC quando a primeira estação privada de televisão se formou, durante muito tempo não tive nenhum tempo, para além de trabalhar. Só mais de dez anos depois fui durante três anos a treinos de Krav Maga. Continuava com muito pouco tempo, mas o facto de o instrutor ter trabalhado como meu editor fotográfico quando eu dirigia a revista Focus, e de ele ter a capacidade de motivar um grupo muito diversificado, tinha desde seguranças de discotecas, a trabalhadores de call centers, pessoal da TAP, polícias e estudantes, fez com que treinasse com entusiasmo. No entanto esse estado de espírito não durava. Faltava-me sempre tempo para cumprir o mesmo horário e ter regularidade. Quando se perde uma série de treinos coletivos torna-se mais difícil recuperar a inserção e o aproveitamento no ginásio. No final, acabava por desistir.

A minha descoberta do Systema foi tardia. Fui a três treinos num dojo no Saldanha. Depois dados os meus horários irregulares, não continuei.

Um ano depois , fui ao dojo de Sete Rios, onde conheci Stefan Moncada. Devo ter feito menos de meia-dúzia de aulas no local onde começou o Systema Lisboa. No ano seguinte, fiz mais umas poucas aulas no dojo de Benfica, em que o Systema e Stefan passaram a ter poiso. Mas o problema era sempre o mesmo. Os meus horários de jornalista no ativo são sempre os horários das reportagens, algumas delas no estrangeiro, e dos turnos de trabalho demasiado alargados e caóticos. De modo que o Systema permanecia-me estranho: não tinha golpes ensaiados, não tinha rotinas cristalizadas em kata, podia-se estar uma data de treinos sem combater. Antevia que era algo de novo. Mas não conseguia “lê-lo”. Era como um texto com símbolos indecifráveis, que no entanto me parecia belo e harmonioso.

O Systema é como um puzzle em que as coisas demoram tempo a encaixar. Percebia que ao contrário do Krav Maga - em que se jogava num crescendo, transformando o medo em adrenalina e esta em agressividade e ataque - no Systema, as coisas passavam-se ao contrário: o nosso primeiro combate era transformar o medo em calma e entrar sem se notar no círculo interior dos nossos agressores de modo a conseguir resolver favoravelmente a ameaça.

Respirar, manter a postura, movimentar-se e conseguir ser flexível, fazendo de cada resposta uma ação em relação a uma ameaça ou uma situação concreta, apareciam-me como aquilo que eu conseguia ver e perceber, mas estava difícil conseguir encaixar este mundo novo e fazer com que o meu corpo se tornasse nativo e não completamente estrangeiro no continente do Systema.

Emigrei para o Luxemburgo para dirigir um jornal e um site de informação. Sempre que regresso a Portugal passei a ter aulas individuais de Systema com Stefan Moncada. A dinâmica dessas lições e a enorme capacidade do sensei em conseguir fazer de cada aula uma lição que funciona para a pessoa que está aprender fizeram toda a diferença. Em menos de 20 aulas ao longo de três meses, foi como se o dojo se tivesse tornado um território mais claro e eu começasse lentamente a encaixar o que fazia. Cada aula é um desafio, cada lição permite ultrapassar os meus limites. Passo a passo , estas classes individuais permitem, com confiança, progredir e ir estilhaçando medos e incapacidades.

Naturalmente que não me tornei um especialista, mas sinto que estou bastante mais preparado do que estava e sobretudo ganhei a vontade de trabalhar todos os dias para conseguir lidar com medos e dores que anteriormente apenas tinham uma resposta violenta e muitas vezes sem lógica.  

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