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Falo por experiência própria, não pela cartilha de alguém. Estou a caminho dos 72 anos, não sou particularmente robusto, antes pelo contrário, e encontrei o systema com 69 anos feitos. É verdade que venho de uma longa história de ginásios, comecei aos 17, 18 anos, judo, karate, qiqong, taiji, shaolin kung fu… Mas isso não quer dizer nada, e hoje pergunto-me mesmo se ter uma experiência de artes marciais anterior ao systema é uma vantagem ou antes uma enorme desvantagem. Claro que depende da situação concreta, as generalizações são traiçoeiras: onde é que se treinou, com quem se treinou, qual foi o nosso verdadeiro interesse na prática, etc. Mas qualquer que seja o caso há uma regra comum às artes marciais, se não a todas pelo menos à grande maioria: a sua espartilhada padronização. De uma forma ou de outra o que se treina é um corpo condicionado para reagir em função de determinados padrões como resposta a outros padrões: se tu fizeres isto eu faço aquilo, se eu fizer assim tu fazes assado. E este é o problema. Porquê? Porque o que resulta daqui ao fim de anos e anos de prática é um corpo prisioneiro de si próprio, que perdeu o instinto do gesto expontâneo, que se deixa surpreender pelo inesperado. Ora isto acontece qualquer seja a idade do praticante. Não é por se ser mais novo ou mais velho que o nosso corpo perde a memória das reacções de sobrevivência inscritos no adn desde tempos imemoriais. É porque independentemente da idade  as deixámos abafar, reprimir, enfraquecer.

 

E é aqui que entra o systema, um treino milenar que nos devolve os recursos duma arte da sobrevivência quaisquer que sejam as condições de quem o pratica ou as circunstâncias em que o pratica. Mas como, trata-se de um milagre? Não, não é um milagre, é apenas a redescoberta das possibilidades que há em cada um de nós e que cada um de nós deixou adormecer pelas mais variadas razões, físicas e e mentais. Ok, tenho 72 anos e não consigo dar cambalhotas de dois metros de altura? Qual é o problema?, dou cambalhotas de meio metro. Não consigo rolar para trás a 180 graus? Pois bem, rolo a 90. Não faço 50 flexões de braços? Faço cinco, devagar devagarinho. Não posso ser projectado como um saco de batatas? Aprendo a cair como me der jeito. Nada disto é essencial, o essencial está na extrema clareza dos pilares do systema: respiração, controlo muscular, estrutura do corpo, movimento. De cada um conforme pode, o resto vem por acréscimo: coordenação, reacção, noções de timing e distância, espontaneidade, a matemática do caos. Única exigência: treino regular, disponibilidade para aprender tudo outra vez, um bom ambiente de trabalho, um professor competente e que goste de ensinar o que sabe. Coisa que é muito mais rara do que possa parecer - o ensino das artes marciais são um mundo cheio de segredos e segredinhos, truques e manhas. Sei do que falo, ando nisto há mais de 50 anos. E por aqui me fico.

 

 Deepak Chopra escreveu em 1993 um livro empolgante a que chamou Ageless body, timeless mind: the quantum alternative to growing old  (Corpo sem idade, mente sem fronteiras na versão brasileira da editora Rocco). Aí descreve a par e passo como o corpo e a cabeça de cada um de nós são diariamente programados para envelhecer segundo as regras do condicionamento colectivo e que se resumem numa frase fatal: Estou velho. Tenho 60 anos? Estou velho. Tenho 70 anos? Estou velho. E pronto, a partir daí esse tal corpo fica mesmo velho.

Ainda há meia dúzia de  anos tive um professor de shaolin kung fu que não se inibia de dizer no decorrer das aulas que um “sénior” devia era praticar as Oito Peças de Brocade, esse conjunto de exercícios chineses que a cultura dominante destina com ênfase às classes “da terceira idade”. Com o devido reconhecimento pelas suas virtudes, as Oito Peças de Brocade que se fodam. A ironia disto é que esses exercícios foram inventados há 800 anos por um marechal, Yue Fei, para melhorar a saúde dos seus… soldados! Presume-se que não seriam propriamente velhotes.

Na década de oitenta presenciei ano após ano a chacota murmurada de que era alvo um mestre de karate com M realmente grande, Mitsusuke Harada, quando vinha  a Lisboa dirigir os seus estágios de shotokai-do, porque enfim já estava nos seus sessenta anos e alguma malta mais nova achava que ele era demasiado velhinho para as habilidades que fazia, aquilo devia ser tudo combinado com os alunos que trazia com ele… Foi o primeiro professor de artes marciais que ouvi falar de coisas como energia interna, chi  (ele dizia ki, era, e é, japonês), dantien (ele dizia hara), conceitos ainda esquisitos naquela época num país como Portugal. Passados 30 anos o Mestre Harada, hoje  com 90 anos,  continua a fazer os seus workshops por esse mundo fora. Velho? Com todo o respeito velho é o Bruce Lee, que já se passou p’ró outro lado. E tão jovem ainda…»

Velho é o Bruce Lee

por José Amaro Dionísio

 

«Pode uma pessoa nos seus 60’s praticar Systema, essa arte marcial russa em que um dos pilares é o movimento? Se é dum corpo normal que estamos a falar pode. E deve. A questão pôe-se porque olhando para os treinos rapidamente pudemos começar a ver cambalhotas p’ra trás e p’ra  frente p’ra cima e p’ra baixo p’ra direita e p’ra esquerda e a reacção é epidérmica: estes gajos são malucos, isto não é para mim.

Equívoco.

Systema_Lisboa_Arrábida_2018_(126).JPG
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