
MONCADA
MARTIAL ARTS


Da Respiração nas Artes Marciais
por Stefan de Moncada
Qual a relação entre as técnicas de respiração tal como as encontramos nalgumas tradições e práticas religiosas em todo o mundo, como os pranayamas no Yoga, o sufis no islão, a meditação zen no budismo e certas correntes católicas, e a preparação para o combate dos Navy Seals nos EUA, ou dos Spetsnaz na Rússia? Porque é que se recomendam exercícios respiratórios para quem sofre de stress pós-traumático?
Costumamos descrever as artes marciais como um método de defesa contra um ataque à nossa integridade física. Podemos definir as artes marciais como sendo o treino da preservação e defesa da vida contra uma ameaça exterior, um método de sobrevivência. Mas isso é apenas o ponto de partida das artes marciais. Como disse um dia um mestre de Systema:
«Se não souberes lutar, o que estás a fazer não são artes marciais.
Mas se apenas souberes lutar, também não estás a treinar artes marciais.»
Isto faz-nos pensar no segundo sentido das artes marciais. As artes marciais não nos mantêm simplesmente em vida, elas podem enaltecer e fortalecer a vida. O mestre de Systema, Vladimir Vasiliev, costuma dizer que um bom guerreiro é um guerreiro saudável. É por isso que a prática marcial está fortemente ligada à saúde e à sacralidade da vida. Existem inúmeras maneiras de cuidar da nossa saúde física e mental. Através, por exemplo, de uma dieta cuidada, de exercício físico regular, de um repouso de qualidade e… da respiração.
A respiração é um dos meio através dos quais eu me mantenho vivo mas é altamente subestimada. É um fenómeno fisiológico involuntário mas que, se tornado consciente e voluntário, pode mudar a nossa vida!
A respiração é considerada como um dado adquirido. No entanto, ignoramos muitas vezes como uma má gestão da respiração nos pode afetar. Ora, o primeiro passo para dominar alguma coisa, é tomar consciência dela. O segundo, será, uma vez que tenho consciência, fazer alguma coisa quanto a isso. Costumamos descrever a nossa reação ao stress através destes três conceitos: freeze (congelar); fight (lutar); flight (fugir). Os três “f”’s descrevem comummente como se reage face uma situação de stress intenso. É uma reação provocada pelo nosso instinto de sobrevivência e que tem o seu correlato a nível fisiológico. Eis alguns dos seus efeitos: ativação do sistema nervoso simpático; secreção das hormonas de “stress” (adrenalina e cortisol); aumento drástico do ritmo cardíaco para fornecer oxigénio aos maiores grupos musculares; aumento da frequência respiratória para fornecer mais oxigénio ao sangue (no caso da reacção Freeze (congelar), podem ocorrer momentos de restrição respiratória ou pequenos momentos de apneia); redução temporária da nossa percepção da dor, etc.
Estas são apenas algumas das inúmeras reações fisiológicas que levam uma pessoa a re-agir, em vez de agir de maneira não-reativa. Isto mostra como o stress tem o seu correlato em nós a nível fisiológico e como rapidamente nos tornamos reféns dos nossos estados fisiológicos. Muitas destas reações são despoletadas por um medo psicológico. É a nossa reação psicológica face a uma situação que condiciona como as coisas vão correr. Tudo o que aparecer como uma ameaça terá um impacto em nós internamente e externamente. Como o major Konstantin Komarov, também mestre de Systema, afirma:
«O teu estado emocional é que controla a situação.»
Quando estamos face a uma situação ameaçadora (como por exemplo um carro se atravessa à nossa frente, ou alguém no prega um susto) o nosso cérebro pensa que está em perigo e em consequência o nosso corpo reage para sobreviver. São mecanismos muitas vezes involuntários no sentido em que são “mais fortes do que nós”.
Contudo, às vezes esta reação é desproporcionada. Quando uma situação que não é verdadeiramente ameaçadora, em que não corremos risco de vida, despoleta o mecanismo dos 3 F´s (Freeze, Fight, Flight), isto acontece porque cada um de nós tem vários tipos de medos, traumas, tensões, diferentes níveis de ansiedade ou mesmo stress pós-traumático. E se nada fizermos, estas “tensões” vão ganhando cada vez mais controlo e impacto nas nossas vidas.
Para evitar uma resposta exagerada ao stress ou aos nossos medos, existem várias soluções como por exemplo, técnicas de relaxamento através da respiração, massagens, meditações, orações, exercício físico, etc. Cada pessoa tem de encontrar aquilo que funciona melhor para si. Quando integramos estas “técnicas” na nossa vida quotidiana, vemos como nos ajudam na maneira como reagimos ao stress. Pois stress, medo e tensões existirão sempre enquanto houver vida. O que pode mudar é o modo como reagimos ao stress. Nas artes marciais, a ameaça de uma pancada iminente ou de uma dor física ou de uma lesão provoca sempre algum medo / stress que acaba por impactar a nossa fisiologia. Para não nos deixarmos dominar pela ansiedade recorremos a vários exercícios respiratórios. No Systema, o mais conhecido é o burst breahting que visa aumentar a intensidade e frequência respiratória para lidar com uma dor intensa ou ansiedade psicológica. Uma vez reduzido o stress físico ou mental, deve-se voltar a uma respiração natural e calma. Como diz o mestre Vladimir Vasiliev, a respiração é a ponte entre o meu espírito e a minha fisiologia. O objectivo principal dos exercícios de respiração no contexto das artes marciais é simples: eficácia no combate e capacidade de recuperação. Num contexto militar é levar a cabo a missão que foi atribuída, voltar a casa e ser capaz de voltar “à carga” se necessário.
Em suma, a nível fisiológico, os exercícios respiratórios procuram acalmar o ritmo cardíaco e o sistema nervoso; reduzir a fadiga muscular e emocional; ajudar a desenvolver a consciência interna e externa e ajudar-nos a discernir entre os medos psicológicos e o que é real (medo da dor, sofrer por antecipação em contraste com a dor real). A respiração consciente ou voluntária, aumenta assim o nosso grau de atenção e foco e permite um maior conhecimento de nós mesmos. Não é por acaso que o Systema também é conhecido em russo por se chamar Poznai Sebia, “conhece-te a ti mesmo”! As artes marciais são também um meio de auto-conhecimento. Dando a palavra a Lao-Tse, o “velho mestre”:
«Conhecer os outros é inteligência; conhecer-se a si próprio é verdadeira sabedoria.
Controlar os outros é força; controlar-se a si próprio é verdadeiro poder!»
Enquanto praticantes de Systema, os alunos devem tentar integrar o mais frequentemente possível a respiração em todos os exercícios que fazem mesmo que isso pareça insignificante. Tive um aluno que me disse um dia que durante uma luta de rua todas as técnicas que ele tinha aprendido tinham “desaparecido” por causa do stress, tudo menos a respiração. A respiração foi a primeira coisa que ele se lembrou dos treinos de Systema e foi aquilo que mais o ajudou a sair daquela situação ileso.
Dito isto, é fundamental sublinhar o facto de que este domínio da respiração só se desenvolve com exercícios práticos. Como diz um grande amigo meu e companheiro de artes marciais, José Amaro Dionísio:
«Por mais que uma pessoa estude o assunto pode não beneficiar disso no seu dia a dia se não treinar regularmente os processos respiratórios em ligação com os movimentos. E para isso precisa mesmo de um guia que a ajude. Há milhares de livros sobre respiração, mas lê-los todos não chega. É preciso mergulhar dentro do corpo, ouvi-lo, senti-lo, desafiá-lo, e sabemos bem como a vida contemporânea é inimiga dessa escuta, tudo está organizado para nos fazer sair de dentro de nós próprios.»
Em conclusão, a respiração é a chave para permanecer funcional num combate e na vida. A nossa resposta ao stress depende da respiração.
O relaxamento que se procura no Systema ou nas artes marciais não é um estado de calma absoluto, mas sim um estado que nos permite estarmos livres da tensão extra. Procuramos não reagir exageradamente às situações para tentar dar a resposta mais justa, proporcional e eficaz. O Systema procura fundamentalmente desenvolver a capacidade de reduzir de modo rápido os efeitos negativos do stress. Ora, o primeiro passo para lidar com o stress na nossa vida é reconhecer que costumamos estar mais tensos do que o necessário e que podemos perfeitamente baixar o nível de tensão sem nos prejudicarmos e sem deixarmos de ser quem somos. O mesmo pode ser dito sobre o orgulho e a humildade. Não precisamos de ter um "peito inchado" ou um grande ego para sermos fortes. A tensão muscular ou o orgulho escondem muitas vezes insegurança e medo. Também não devemos confundir humildade com fraqueza, nem relaxamento com moleza, pois pode muitas vezes significar o contrário. A capacidade de adaptação e de não resistência é sinónimo de inteligência, força e sabedoria.
Não se esqueçam de respirar e até ao nosso próximo treino!
Lisboa, Novembro de 2021
Stefan de Moncada