top of page

 As Artes Marciais - um caminho solitário em conjunto 
por Stefan de Moncada

« Segundo algumas estatísticas e segundo a minha própria experiência enquanto professor de artes marciais, mais de 70% dos praticantes de artes marciais desistem ao fim dos primeiros anos de treino, independentemente da modalidade.

Vejo muitas vezes alunos a desistirem por não conseguirem superar algumas dificuldades e frustrações. Estas últimas podem estar ligadas ao facto da arte marcial ser de difícil aprendizagem e por necessitar de um esforço diário a longo prazo.

Stefan Systema (1.1.jpg

Em todo o caso, a razão tem sempre a ver connosco e com um objetivo que nos demos e que não conseguimos alcançar de imediato como previsto.

O que nos leva a atravessar a porta de um dojo para começar a treinar artes marciais é algo de muito pessoal.

Será insegurança? Raiva? Orgulho? Vaidade? Humildade? Bem-estar físico? E a razão que nos leva a continuar a treinar é muito diferente daquela que nos motivou a começar em primeiro lugar. Os motivos vão portanto mudando em função da nossa compreensão e conhecimento.

Como vimos, se mais de metade das pessoas que começam a treinar artes marciais desistem logo nos primeiros anos é que se calhar, mais do que o estilo ou o professor não serem adequados, os próprios praticantes não sabem exatamente o que querem e também não sabem lidar com as suas próprias emoções. E é uma grande pena porque não chegam a sentir um dos maiores benefícios das artes marciais. De facto, além do bem-estar imediato resultante de uma atividade física, a longo prazo um dos melhores benefícios das artes marciais, além de nos ensinarem a nos defendermos, é que ensinam a perseverança e a resiliência. Duas qualidades psicológicas fundamentais para levar a cabo qualquer empreendimento.

A longo prazo, as artes marciais ensinam-nos que os verdadeiros frutos não se colhem rapidamente e que é preciso dedicação, determinação e paciência. Ensinam-nos também que o contam são os pequenos passos que damos e que os objetivos não se realizam sem um trabalho diário e árduo. Costuma-se dizer que toda a grande viagem começa por um passo. As artes marciais são iguais. Não se trata tanto de intensidade mas mais de regularidade. É como um relacionamento - no início há muita paixão e somos capazes de tudo e na medida que o tempo passa, a força e o entusiasmo diminuem. Há que fazer um esforço constante e diário para não deixar apagar a chama. Como diz o filósofo Pierre Rabhi, “a vida apenas se transforma numa bela aventura se tivermos pequenos ou grandes desafios para ultrapassar, que nos mantêm vigilantes, que suscitam a criatividade, que estimulam a imaginação e que desencadeiam o entusiasmo, a saber, o divino em nós.

E para isso, no caso das artes marciais, o mais fundamental é gostar de cada passo que damos, apreciar cada sessão de treino, pois, ao final de contas , o que interessa é sentirmos-nos realizados com o que fazemos dia após dia.

Mais do que uma vez vi pessoas chorarem por tristeza ou alegria no tatami. Pode ser porque se superaram num movimento, porque desbloquearam algo dentro dela que só elas sabem ou porque reavivaram um trauma profundo alojado no corpo. Mas também já vi a imensa felicidade que as artes marciais proporcionam. São muitas vezes a bolsa de oxigénio na vida de muitas pessoas. Essas alegrias e tristezas são experiências que mais ninguém pode sentir e são intransmissíveis mas acontecem no meio de uma comunidade e graças aos parceiros de treino e aos professores.

A comunidade das artes marciais salienta a nossa interdependência e humanidade. Ela é como uma fraternidade. Somos todos irmãos no sentido em que vivemos todos as mesmas aventuras e desafios. Um pouco à semelhança de um mosteiro onde os monges se tratam por irmãos. Estão todos lá por motivos diferentes numa vida solitária mas vivem em conjunto a rumar na mesma direção. Ou como um grupo de guerreiros que se juntam face às adversidades e que vivem medos e superam desafios em conjunto.

As artes marciais representam um espaço humano em que todos se encontram a nu. É um espaço comum onde desaparecem as distinções sociais e profissionais. Ninguém sabe quem é ninguém e isso não importa. Nem falar a mesma língua importa. São um espaço em que uma pessoa mais idosa pode ensinar um jovem, ou mesmo em que um jovem pode ensinar uma pessoa mais velha. É um espaço de humildade, partilha e de entre-ajuda que visa um bem-estar maior e que resulta num fortalecimento das nossas capacidades e atualização das nossas potencialidades.

 

As artes marciais são um excelente meio de auto-conhecimento porque lidam com as nossas ansiedades, medos ou traumas, inseguranças, sonhos ou fantasias. Costumo dizer, num tom de relativa brincadeira, que o meu trabalho de professor é desiludir as pessoas no sentido em que desfaço as suas ilusões ou imaginações que possam ter em relação ao treino para simplesmente enfrentarem o real, o presente, sem mais nem menos. É óbvio que isto não chama multidões. Se as artes marciais fossem fáceis, estariam cheias de pessoas. O caminho das artes marciais está aberto a todos, mas não é para qualquer pessoa.

A melhor imagem que me vem à cabeça quando penso nas artes marciais é a de uma viagem, a de um caminho que percorremos cheio de aventuras. Não é por acaso que muitas artes marciais japonesas têm no seu nome a palavra “via” (ou caminho), como por exemplo, o Aiki-do - a via da harmonização das energias; o Ju-do - a via da suavidade; o Iai-do - a via da vida em harmonia; o Karate-do - a via da mão aberta; o Kyu-do - a via do arco; o Jeet-Kune-do - a via da interseção do punho; etc. Tudo isto culmina na cultura japonesa do Bu-do - a via da guerra ou a via das armas.

Atingir o primeiro grau do cinto preto (1º dan) não deve ser considerado chegar ao fim de um caminho. Ao contrário, é o início da verdadeira aprendizagem. Se dependermos de uma graduação, estatuto ou medalha para continuarmos a treinar então adotámos a estratégia errada. O que é que faremos quando essa meta for atingida? Deixamos de treinar porque não há mais nenhuma meta visível e exterior a atingir? Como é que treinam aquelas pessoas que estão numa modalidade sem faixas e graduações, por exemplo?

 

Os verdadeiros artistas marciais passam a vida a treinar, quer a dar aulas, quer a praticar para eles próprios. O que é que motiva esses praticantes a perseverar no caminho? As artes marciais são um estilo de vida. Uma maneira de interagirmos com as pessoas e com o nosso meio ambiente, e sobretudo, um modo de auto-conhecimento e é por isso que treinamos até não podermos mais. Porque enquanto vivermos, nunca nada está garantido. Aquela ideia de que o mestre já não precisa de treinar é totalmente falsa. Aquele que deixa de treinar, deixa de progredir e ao contrário, começa a regredir. Com a idade, perdemos reflexos, músculos, velocidade, flexibilidade e por isso temos de treinar para manter o que temos ou para saber adaptar à nossa condição do momento. Com o envelhecimento, o praticante de artes marciais também tem de aprender a moldar a técnica à sua condição física.

Penso, por exemplo, no meu mestre de Jogo do Pau, Nuno Russo, que no seu apogeu era capaz de coisas incríveis (mesmo se ainda hoje, aos 70 anos, acho que o que ele faz é transcendental) e que hoje, como ele diz, está a “re-aprender” a técnica do Jogo do Pau para ser adaptada ao senhor de 70 anos que ele é.

Para algumas pessoas isso seria desmotivante porque se vêem a regredir em comparação ao que foram. Para outras, isso é a essência das artes marciais: elas são uma ferramenta para nos empoderar aqui e agora e ajudar-nos na vida de todos os dias. Não vale a pena comparar-nos com o que fomos no passado, nem fantasiar com o que seremos no futuro. Apenas vale a vida presente. Um praticante de artes marciais pode ter sido um grande atleta ou campeão numa fase da sua vida, até o melhor do mundo. Mas virá um momento na vida em que será ultrapassado por outros e até pelos seus próprios alunos. A eficácia das artes marciais está no facto de me ajudar a viver no presente. Quem não se conhece a si mesmo vive preso em ideias do que foi ou do que deveria ser. A essência da paz e da felicidade passa pelo conhecimento de si mesmo.

Cada pessoa tem de fazer o seu percurso. Como diz Bruce Lee, “um professor nunca é um dador da verdade – ele é antes um guia, um ponteiro para a verdade que cada aluno tem de encontrar por si mesmo.”

Muitos alunos pensam que se se limitarem a aprender com um professor, se tornarão tão bons ou melhores que ele, como se a experiência do mestre transladasse diretamente para eles. Penso que é mais produtivo pensar que a experiência de um mestre se limita a ele próprio. Cada um de nós tem de fazer o seu próprio percurso e experiência. Cada um de nós terá um percurso diferente e será esse percurso pessoal e único que fará com que nos tornemos independentes e autênticos praticantes de artes marciais.

Para vos dar outro exemplo, mais pessoal, eu era praticante de Aikido já há alguns anos quando conheci práticas diferentes tais como a arte marcial russa, Systema ou o Jiu-Jitsu Brasileiro. Eu tinha duas hipóteses: continuar a treinar uma arte e ser bom nela, conhecendo todas as suas coreografias respectivas e ter o cinto preto à volta da cintura, ou ter as habilidades que realmente desejava e pelas quais comecei a treinar artes marciais em primeiro lugar, mesmo que isso significasse recomeçar a zero. Se sentimos que o estilo que treinamos ou que o professor com o qual aprendemos não nos satisfaz, não devemos recear procurar e mudar de estilo ou de academia, mesmo que isso implique voltar à estaca zero. Temos de fazer a distinção entre a evolução nas graduações e na hierarquia de uma escola e as nossas habilidades técnicas e competências marciais. Muitas vezes, uma coisa não implica a outra, infelizmente.

No caso da minha prática de Jiu-Jitsu Brasileiro, por exemplo, foi necessário conhecer quatro academias diferentes para encontrar aquela com a qual estivesse mais em sintonia. Foi preciso conhecer a Academia Five Elements Jiu-Jitsu liderada pelo mestre Hélio Perdigão para finalmente aprofundar a minha prática de JJB. Tinha duas escolhas – ficar-me pela primeira academia e acabar por abandonar a prática por não me satisfazer ou procurar uma escola e professor até estar satisfeito, mesmo que isso implicasse voltar a dar um passo atrás nalgumas coisas. Mas o que significa tudo isto se não nos sentimos realizados com o que fazemos? Eu chamo a isso hipocrisia, mesmo que seja connosco próprios. No final de contas, a nossa felicidade e as nossas habilidades falarão sempre mais alto do que qualquer graduação que possa existir no mundo.

Não preconizo que se deva estar sempre a mudar de academia ou estilo. Ao contrário, deve-se aprofundar a prática com um professor. Senão nunca mais aprenderemos nada. Mas se não tivermos a bênção de encontrar logo um mestre com o qual nos identificamos, devemos continuar a procurar. Quando encontrarmos o nosso mestre, devemos assentar e criar raízes. É também assim que funciona a Natureza. Uma árvore pode viver anos e anos num local sem crescer como deve ser. Pode ser por falta de luz do sol, de nutrientes na terra ou porque não tem água suficiente. Mas quando a árvore está no seu local ideal e todas as condições estão reunidas, as raízes mergulham e a árvore torna-se grande e bela e realiza o seu máximo potencial. Assim também deve ser um praticante de artes marciais.

O Systema também foi outro desafio à minha vontade de treinar. Não havendo nenhum professor de Systema cá em Portugal nessa altura, tornava-se praticamente impossível treinar esta modalidade. E tentar aprender uma arte que não é parecida com mais nenhuma foi muito complicado. Foram precisos anos e anos de treino, viagens para o estrangeiro para aprender com os mestres e trazê-los cá a Portugal para finalmente poder compreender e praticar esta arte. Hoje estou grato por tudo e posso dizer que aprendi com alguns dos maiores mestres no mundo do Systema mas tudo à custa de muito esforço, determinação e paciência. Podemos sempre encontrar razões para deixar de treinar mas se formos pacientes e exigentes connosco próprios, na realidade, há poucos obstáculos que podem fazer face à nossa força de vontade.

O resultado disto tudo fez com que hoje em dia, depois de 20 anos de treino constante e dedicação sincera, tivesse uma experiência muito singular e sólida, rica e equilibrada nas artes marciais. Procurei sempre aprender com os meus mestres e seguir os seus conselhos e exemplos. Hoje em dia, tenho a sorte de poder ser professor a tempo inteiro de artes marciais, sem nunca ter procurado fazer isso diretamente. O que sempre norteou a minha prática foi ser um simples e bom praticante de artes marciais e estar satisfeito comigo próprio no meu dia a dia.

Posso portanto apenas dizer o seguinte: não sejam seguidores passivos. Sejam aprendizes humildes, sim, mas investiguem e procurem a verdade. Como diz Santo Agostinho, “sê humilde para evitar o orgulho, mas voa alto para alcançar a sabedoria.”

 

Tenham a coragem de pensar e agir por vocês próprios. Um artista marcial verdadeiro é um espírito livre. As artes marciais visam a libertação do ser humano através de um mecanismo muito próprio: eu conheço-me através da minha interação com os outros. Viver plenamente significa sermos senhores de nós próprios. Se calhar as artes marciais nunca foram tão importantes como hoje, nesta sociedade complexa com sistemas de controlo e manipulação cada vez mais subtis e mecanismos de medo mais sofisticados. Nunca foi tão urgente pensar na nossa própria liberdade, identidade e emancipação. E de certeza que as artes marciais nos podem ajudar nesse sentido. Como já dizia Bruce Lee, “a pessoa mais perigosa é aquela que escuta , pensa e observa.”

Portanto, companheiros de artes marciais lembrem-se sempre que, embora aprendamos com os nossos professores e colegas de treino, cada experiência nas artes marciais é única e intransmissível e a nossa evolução na arte depende inteiramente da nossa vontade e esforço. Um mestre estende-nos a mão mas temos de ser nós a agarrar-lhe a mão de volta. Sejam pacientes vivam no presente sem pensar nos resultados e verão que se tornarão fortes e confiantes. Todos nós passamos pelas mesmas dificuldades e encontramos-nos neste espaço comum que é o auto-conhecimento. A beleza das artes marciais é essa: um espaço comum onde nos encontramos para nos superarmos individualmente. »

Stefan de Moncada

Lisboa . 2024

bottom of page